Medo e miséria na Grã-Bretanha Neoliberal

Tradução: Matheus Soares

Projeto Mímesis
8 min readSep 23, 2020

Mark Fisher é um crítico da cultura britânico que fez sucesso com seu blog k-punk onde debatia a cultura pop, capitalismo, adoecimento mental e outros temas. Em 2009 publicou seu livro Realismo Capitalista, que questiona, entre outras coisas, a ideologia do capitalismo tardio e a imaginação política, com a instigante frase: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Em 2017 Mark Fisher faleceu de modo trágico, quando perdeu sua batalha para a depressão, tema que estudou bastante.

Não se preocupe, eu não desisti de blogar — nem valorizo os blogs menos do que antes. A razão de não haver postagens aqui há anos é porque a pressão da precariedade atingiu um novo auge de intensidade. Estou ministrando dois cursos de graduação, um curso de mestrado e um curso de educação para adultos neste semestre — em três instituições distintas. Isso, acrescido a uma incansável ronda de palestras em público, significa, neste momento, que estou contando o meu tempo livre em minutos. Eu nem tenho tempo para faturar o dinheiro que devo.

Se você me enviou um e-mail e eu não respondi, o envie novamente, por favor — é simplesmente impossível acompanhar no momento, por isso agradeço os lembretes.

A propósito do que foi exposto acima, apresento abaixo algo que escrevi para este evento [1] excelente — um dos vários eventos recentes nos quais falei e que suscitou todos os tipos de pensamentos que eu gostaria de ter registrado aqui, se ao menos houvesse tempo (há uma centena de mensagens virtuais morrendo lentamente conforme a pressão inflexível da precariedade aumenta). O que tenho o prazer de relatar é que, em todos os eventos em que falei recentemente, há um sentimento crescente de otimismo militante. Vimos as primeiras demonstrações significativas de raiva pública nos protestos estudantis na semana passada [2], e a resposta fingida/horrorizada da grande mídia a essa “violência” branda mostra como isso — e a política parlamentar — está no clima pós-acidente [3]. Óbvio, eles não estão apenas fora de alcance — como o governo de coalizão, estão trabalhando desesperadamente para manter a simulação de um “terreno central” favorável aos negócios, cujas condições foram vaporizadas pela crise de 2008.

A passagem que colei abaixo — a introdução à minha apresentação, que foi intitulada “Não estamos todos juntos nisso: espaço público e o antagonismo na esteira do realismo capitalista” — pretendia ser uma espécie de exercício de ajuste fenomenológico minimamente de cunho ficcional, para dar a uma audiência predominantemente não britânica uma ideia de como tem sido viver no Reino Unido sob o realismo capitalista. Tudo aqui é baseado em experiências genuínas, embora algumas tenham sido comprimidas e condensadas, e não sejam necessariamente minhas.

Agora:

O cartão magnético não funciona. A máquina detecta ansiedade, você tem certeza disso. Ele sabe que o cartão não é seu. Você tenta o cartão novamente. Nada. Mesma luz vermelha. O cartão não é seu, mas você deve ter acesso ao prédio. Você teve que pedir emprestado o cartão de outra pessoa porque só é possível obter cartões magnéticos entre 9 e 13 horas e você está trabalhando nesses horários.

Alguém está atrás de você. Você sente-se desconfortável. Eles notarão que o cartão não pertence a você? Você tenta o cartão novamente. De novo, nada. Luz vermelha.

Seu telefone toca. Você tem dificuldades de tirá-lo da bolsa. No momento em que você o tiver, a chamada será encaminhada para o serviço de atendimento. Você vê que a ligação veio de outro de seus empregadores. Uma ansiedade familiar toma conta de você: o que você fez de errado agora? Mas você não tem tempo para se preocupar com isso no momento.

Você tenta o cartão magnético novamente. Por fim, a luz verde acende. Você está na porta.

Correndo pelo corredor. Em qual andar você deveria estar? Você vasculha sua bolsa até encontrar a documentação. Você deveria estar neste andar, mas na outra extremidade do corredor. Você caminha em direção ao número do quarto. Mas de repente seu progresso é bloqueado. Há um sinal de proibição de entrada: um escritório que corta o corredor pela metade e que impossibilita o acesso.

É uma topologia de pesadelo. Cada vez que você parece se aproximar, outro obstáculo aparece. Você terá que sair do corredor, descer as escadas e subir para o próximo lance de escadas, enfrentando várias portas de acesso com cartão magnético no caminho.

A esta altura, os cinco minutos que você esperava ter antes de começar estão evaporando rapidamente.

Quando você chega ao quarto para o qual estava indo, já está atrasado. Você faz logon no computador. Ou você tenta. O login é rejeitado. Você tenta novamente. Sem sorte. Então você se lembra: você está tentando um login de uma das outras instituições em que trabalha. É difícil acompanhar, às vezes. Você se lembra do login correto e examina rapidamente uma de suas contas de e-mail. Vê um e-mail de um administrador. Você preencheu seu formulário de dados bancários? Sim, você preencheu, você pensa. Semanas atrás. Mas é claro que você não pode ter certeza — talvez você apenas tenha pensado que tinha preenchido. Eles o perderam? Flash de ansiedade: não serei pago este mês? No ano passado, quando você preencheu todos os mesmos formulários que deve preencher novamente este ano, você não foi pago por um contrato inteiro de cinquenta horas, até que apontou o erro. A mesma coisa acontecerá novamente?

Mas não há tempo para se preocupar com isso agora.

Você tem uma sala de setenta alunos esperando para serem ensinados.

Assim é a vida nas instituições públicas inchadas e super financiadas do Reino Unido.

Bem-vindo a Liberty City [4]. Quanto mais ocupado você estiver, menos você verá.

Dez anos atrás: o New-Path Institute

O psiquiatra pergunta se seu humor melhorou.

Você diz não.

O psiquiatra diz que a dose precisa ser aumentada.

Você não responde. Você não pode. As drogas que você está tomando e a condição de que está sofrendo fornecem o tempo de resposta de um zumbi. O psiquiatra se sente muito distante, como se você o estivesse vendo através de uma lente olho de peixe.

Você não precisa responder. Não se trata de suas respostas.

Além disso, há uma voz zombeteira em sua cabeça gritando constantemente com você.

Claro que as drogas não funcionam.

Claro que você não vai melhorar.

Porque não há nada de errado com você.

Apenas desista.

Mas é mais fácil falar do que fazer.

O melhor que você pode esperar é um coma.

Após a consulta, você retorna para sua cama. Tudo parece muito pesado, como se uma pressão submarina esmagadora estivesse caindo sobre você. Você deita na cama, absolutamente convencido de que esta é a verdade — o Real cru e sem verniz. Estranhamente, essa sensação glacial implacável de certeza não diminui sua ansiedade nem traz nenhum alívio. Você não pode descansar, embora esteja catatonicamente imóvel. Seu coração está batendo forte. Uma britadeira saiu de uma história de Poe [5]. Ele fica mais rápido e alto até que a única coisa mais alta é a voz em sua cabeça.

Mais tarde, você diz a uma enfermeira:

Então é isso que o tratamento significa? Drogas e encarceramento.

Eles acenam com a cabeça. Ao fundo, alguém está uivando.

Agora:

Corra para um dos outros lugares onde você trabalha. Você deve fotocopiar alguns textos.

Mas quando você chega no corredor, todas as portas estão trancadas. Ninguém lá.

Esta é a segunda vez que isso aconteceu. Da última vez, a copiadora não estava funcionando.

Você deveria ter vindo mais cedo hoje. Mas então não havia tempo.

Derrotado, mas tentando garantir que a viagem de ida e volta de duas horas não seja uma completa perda de tempo, você vai à biblioteca, usando o cartão magnético temporário que recebeu porque seu contrato ainda não foi feito. Você pega alguns livros da estante e tenta os conferir. Sem dados. Seu registro de biblioteca ainda não foi preparado.

Você pode voltar mais tarde?

Sim, você pode voltar mais tarde.

No trem para casa. Esmagamento indutor de claustrofobia. Você está tão ansioso com a possibilidade de ter seu iPod ou telefone roubado que quase seria um alívio se eles realmente fossem.

Exausto, ainda de pé porque não tem espaço para sentar, você pensa em ler o livro na bolsa. Mas a tentação do jornal gratuito é muito grande. Suas manchetes fixam-se em sua mente cansada como predadores que observaram um animal ferido. As pequenas narrativas edipianas de celebridades prendem você. Tudo desmoronando na forma universal do tablóide. Conversa fiada incluindo todas as outras notícias. A política como novela familiar. Nada acontecendo, exceto ambição, intriga, inveja. Você está entediado mesmo estando fascinado.

Seis anos atrás:

No consultório do terapeuta ocupacional.

Você está sendo solicitado a provar que está mentalmente apto.

Porque — como o gerente de Recursos Humanos gentilmente apontou — você já sofreu de estresse no passado. (O pensamento passa pela sua mente — não que eles se importassem quando você estava sofrendo.) Mas agora as pessoas estão preocupadas.

A raiva que você tem demonstrado em relação à administração só pode ser um sinal de que você não está bem. Um pouco desequilibrado.

Não se preocupe. Ninguém está atacando você. Estamos todos aqui para ajudar.

Você diz ao terapeuta ocupacional:

Se eu disser que a gerência está conspirando contra mim, isso provará que estou louco?

Agora:

Pisando sobre o vômito, você se recorda tarde demais: só um idiota iria sair para o centro de uma cidade da província inglesa tarde da noite. É a noite dos mortos-vivos aqui.

Gritos que parecem vir do maldito Dante [6]. E isso só vem das pessoas que estão se divertindo.

A ameaça de violência zumbi balançando.

Tente não chamar a atenção de ninguém.

Quando você passa na ala de Acidentes e Emergência, você vê todos os feridos que andam, e alguns que não estão andando. Todas as vítimas dos muitos happy hours do Reino Unido.

Você se lembra de um médico dizendo que, há vinte anos, o turno da noite era tão enfadonho que eles participavam de corridas em cadeiras de rodas entre si. Não mais. Não com todas as facas, crimes com armas, brigas, acidentes relacionados ao álcool, bombas estomacais…

E todas as criações de superbactérias nas enfermarias… .

Você chega em casa, liga a TV. Vozes patrícias emolientes chorando lágrimas de crocodilo. Os serviços públicos serão massivamente reduzidos. 30%, 40%.

Uma nova era de austeridade.

Aristocratas e milionários nos dizendo: todos nós temos que fazer nossa parte.

Estamos todos juntos nisso.

No Brasil a editora Autonomia Literária está lançando o livro Realismo Capitalista de Mark Fisher

NOTAS:

  1. Evento da Fundação Arte e Espaço Público (SKOR). Foi uma fundação Holandesa que desenvolveu projetos especiais de arte tanto ao ar livre como, também, em espaços públicos, na televisão e on-line. Em 2013, por ausência de subsídios do governo, a SKOR encerrou suas atividades.
  2. Protestos iniciados em novembro de 2010 por milhares de estudantes britânicos contra o aumento das anuidades do ensino superior proposto pelo partido Conservador e Liberal Democrata do país.
  3. No texto original, em inglês, Mark Fisher faz uso do termo “post-crash” em referência à crise financeira imobiliária de 2008.
  4. Foi optado por não fazer a tradução do termo, pois, provavelmente, mesmo que fictícia, Fisher pode ter se referido à cidade Liberty City da famosa franquia Grand Theft Auto (GTA). Ao mesmo tempo, a tradução “Cidade da Liberdade” faz alusão direta à contradição explícita em relação ao modo vida neoliberal de caráter burocrático e adoecedor no Reino Unido — argumento central que Mark Fisher expõe em seu escrito.
  5. Possível referência a Edgar Allan Poe — autor, poeta e crítico literário estadunidense pertencente ao movimento literário denominado de Romantismo (ou Romantismo Sombrio).
  6. Referência ao “Inferno” — primeira parte do livro “A divina Comédia” escrito por Dante Alighieri.

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